direitos do público GLBT

Belo Horizonte, 12 de julho de 2006 - Ano 03 Boletim # 34
BOCA NO TROMBONE



No próximo domingo, 16 de julho, acontece em Belo Horizonte a 9ª Parada do Orgulho GLBT de Belô, um grande evento de visibilidade e afirmação dos direitos do público GLBT, que compreende gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Desde o final de junho, têm sido promovidas diversas atividades preparatórias na cidade, como seminários, palestras, lançamento de livro, festas e mostra de cinema, abordando a homossexualidade sob o foco da cidadania e dos direitos humanos. A Parada é realizada por um conjunto de organizações da sociedade civil, com apoio do poder público municipal. Para a edição de hoje do boletim informativo, a agência de notícias da Rede Jovem de Cidadania entrevistou Cristiano Silva, de 19 anos, e Ricardo Henrique Silva, de 28 anos, ambos militantes do grupo CELLOS – Centro de Lutas pela Livre Orientação Sexual, uma das entidades responsáveis pela coordenação do evento. Cristiano e Ricardo vêm falar sobre combate à homofobia, discriminação racial e as expectativas para a 9ª edição da Parada.



Agência RJC: Como é a atuação de vocês no CELLOS?

Cristiano: Eu conheci o CELLOS no ano passado, quando fui voluntário da Parada. Todo ano tem o voluntariado. Essa aproximação foi muito importante para mim, porque eu cheguei reprimido. No ano passado eu era uma pessoa totalmente fechada, com medo do mundo. Eu tinha medo de tudo. Eu tinha medo da sociedade. Por ser negro, gay, pobre... São fatores que pesam em cima da gente. Na própria família é difícil ter abertura. Eu saía em boate, mas ficava reprimido. Muitas vezes eu me escondia, chorava dentro de casa. Depois que eu vim para o CELLOS e passei a conhecer o que é a luta do movimento GLBT em Belo Horizonte e em Minas Gerais, eu aprendi a me amar primeiro. Eu aprendi a me aceitar como gay. Acho que a primeira coisa que você deve fazer é se aceitar com a sua sexualidade, e a partir daí distribuir esta aceitação para o mundo. Então, antes de tudo, eu me aceitei. A minha família apoiou. A minha mãe nem tanto, mas a família, sim.

O CELLOS tem a diretoria e a militância de base. Somos 30 militantes orgânicos, que pagam suas cotas mensalmente e têm a disponibilidade de sempre ir ao CELLOS, pelo menos duas horas por dia. A maioria não pode dedicar um dia inteiro porque trabalha e estuda. Temos militantes desde o ensino médio até o superior. A participação dos militantes no CELLOS é muito interessante, porque cada um se dá um pouquinho. Estamos com quatro anos de ONG, e isso é muito significativo, uma vez que a luta em Belo Horizonte é muito difícil, por conta da homofobia. É importante ressaltar que a Coordenadoria Municipal de Direitos Humanos também tem colaborado muito conosco. Sempre está preocupada em saber o que acontece e participa das nossas mobilizações.

Ricardo: Nossas principais frentes de ação são nas áreas de direitos humanos, saúde e educação. Temos um trabalho educativo em escolas públicas. Promovemos oficinas e palestras sobre homossexualidade, livre orientação sexual e gênero. Nós fomentamos isso porque queremos atingir a juventude. O preconceito e a discriminação são construções culturais que devem ser combatidas desde criança. Se a pessoa cresce num ambiente em que é esclarecida sobre a homossexualidade, que isso não é bicho de sete cabeças, não é errado, não é nojento, ela se formará como cidadã consciente e não vai discriminar ninguém.

Agência RJC: De que maneira vocês percebem a participação da juventude no movimento GLBT de BH?

Cristiano: Os militantes do CELLOS são todos jovens. O orgulho, para o movimento, é ver que os jovens estão atuando, reivindicando os seus direitos, conquistando visibilidade. Eu estive em São Paulo, recentemente, participando de um encontro regional entre o movimento GLBT e a juventude negra, e pude ver como a juventude tem se organizado. Foi uma experiência que me engrandeceu.

Ricardo: Eu percebo que a juventude, hoje, principalmente a juventude GLBT, está muito mais à vontade. Os gays mais jovens, de 15, 16 anos, estão muito mais esclarecidos e com a cabeça mais aberta para a questão da sexualidade. O que falta, ainda, é a linha política. O que a maioria dos gays pensa de grupo um gay como o CELLOS é que é um espaço de união, de arrumar namorado e trocar figurinha. É claro que isso também rola e deve acontecer, afinal, se nós defendemos a homoafetividade, não podemos impedir ou proibir o afeto, a paquera, mas esse não é o nosso principal objetivo. Nosso foco é politizar e formar militantes engajados na causa contra a homofobia e a discriminação. Os jovens, hoje, estão querendo participar, mas ainda falta essa linha política, que, aliás, o CELLOS tem muito clara, muito colocada.

Agência RJC: Como o CELLOS tem construído essa linha política em Belo Horizonte?

Ricardo: A gente trabalha muito com a interlocução e a convivência, porque não adianta só militar e ir a reuniões se não houver um pouco de convivência com a galera jovem do movimento. Por isso, o CELLOS tem duas atividades específicas, que são o “Vídeo Pipoca” e o vôlei, que foram criadas pensando justamente nessa intersociabilidade. No “Vídeo Pipoca”, escolhemos todo mês um filme com temática homossexual e depois da sessão, que é regada a refrigerante com pipoca, fazemos uma pequena discussão. Essa atividade tem dado muito resultado. Também temos os encontros “Tudo a Ver”, que acontecem aos sábados, às 16 horas. Nesses encontros discutimos as necessidades e os preconceitos que os jovens homossexuais enfrentam.

O homossexual é discriminado em primeiro lugar na família. Quando assume que é gay, não tem apoio dentro de casa. Vira motivo de chacota para os irmãos, a mãe, o pai. É muito difícil, realmente, a família dar esse apoio. Em segundo lugar, vem a escola, que ainda não tem preparação. O professor ainda não sabe lidar com o aluno homossexual. Se esse aluno tiver tendência a ser travesti, é ainda pior. A maioria dos travestis não chega nem a concluir o ensino médio. Não são aceitos, não têm amparo, são marginalizados, são ridicularizados porque têm seio, porque usam roupas femininas. E o que acontece, em geral, é que o indivíduo pensa que está errado por não conseguir se adequar à escola. Na verdade, é a escola que deveria se adequar para receber os diferentes cidadãos. A discriminação também é muito grande no mercado de trabalho. Ainda predomina o tabu de que profissão de gay é cabeleireiro, cirurgião plástico, e por aí vai.

E aí é que o CELLOS entra, quando os jovens chegam até nós, procurando ajuda e orientação. Já aconteceu de muitos virem depois de serem agredidos pelos próprios familiares. Eu mesmo já apanhei várias vezes dos meus irmãos, que são heterossexuais, por eu ser gay. O CELLOS parte, então, com um trabalho de auto-estima. Também há jovens que se aproximam sem assumir que são gays. No entanto, o CELLOS não exige em nenhum momento que esses jovens declarem sua homossexualidade. Isso vai depender da pessoa. Nós damos o suporte e as ferramentas para que eles fortaleçam sua auto-estima.

Agência RJC: Falem um pouco das lutas que vocês têm travado: contra a homofobia, pela parceria civil, entre outras. Como vocês têm trazido essas questões para o debate público e como isso tem impactado?

Cristiano: No dia 17 de março, que foi o dia de combate à homofobia, realizamos um ato na Praça Sete [centro de BH]. Saímos com a cara e a coragem. Falamos a respeito dos direitos dos homossexuais e sobre homofobia. O mais curioso é que as pessoas mais interessadas foram senhoras, senhores, mães, pais, que pararam para ver o ato. Uma outra bandeira importante que temos levantado é contra a discriminação racial, uma temática que hoje está sendo mais discutida no CELLOS, através do Afro-CELLOS. O tema sempre foi de trabalhado pelo grupo, mas não tinha visibilidade. O Afro-CELLOS vem com a proposta de defender os direitos dos negros gays. A idéia focal é abordar temáticas como saúde da população negra, cultura, promoção da igualdade racial e até os mitos associados aos negros, principalmente no que diz respeito à sexualidade. Além disso, temos o objetivo de construir uma interlocução e de nos unir com o movimento negro de Minas Gerais, mesmo porque as políticas de promoção da igualdade racial envolvem a temática da homofobia e da discriminação por orientação sexual. Assumir a coordenação do Afro-CELLOS foi um presente para mim. Quando surgiu a proposta do núcleo, não tínhamos muita segurança de por onde começar. Muitos movimentos negros não têm conhecimento do movimento gay. Foi um grande passo que tomamos. O Afro-CELLOS é um espaço que está em construção e veio para somar forças.

Todas essas lutas envolvem a questão da Parada, que traz maior visibilidade para as bandeiras e para o público GLBT. A Parada conscientiza a sociedade e não só a comunidade GLBT sobre os seus direitos. Sobre a parceria civil, por exemplo, eu vejo muito a mídia difundir que nós queremos casamento, e parceria civil não é casamento.

Agência RJC: Qual é a expectativa para a Parada do Orgulho GLBT deste ano?

Ricardo: A expectativa está muito positiva. No ano passado, não tínhamos tantos voluntários como hoje. Todo ano as paradas têm um eixo temático, definido nacionalmente. A bandeira do ano passado foi pela aprovação da parceria civil, um projeto de lei da Márcia Suplici que até hoje está engavetado e nunca foi votado. A bandeira da Parada de 2006 é pela criminalização da homofobia, projeto da Iara Bernardes, deputada federal de São Paulo. Assim como a discriminação racial é crime inafiançável no Brasil, queremos que a homofobia seja caracterizada dessa maneira. Hoje, se um gay é discriminado e fizer uma denúncia, o máximo que acontecerá com o agressor é pagar em cestas básicas.

Vale destacar que a Parada de BH é uma das poucas que têm caráter marcadamente político no Brasil. Diferente do que acontece em várias outras cidades, onde as Paradas são somente festas ou grandes eventos comerciais, em BH fazemos questão de promover um ato político. Fazemos leitura das leis, falamos das conquistas e derrotas do movimento GLBT e dialogamos com diversos movimentos sociais, que têm um momento de fala própria no ato. Essa é uma marca importante para nós. É claro que, logo após o ato, nós seguimos em clima de festa, o que também é muito importante. Na Parada vai circular um abaixo-assinado pela criminalização da homofobia e pela aprovação da parceria civil. Esperamos dobrar o número de participantes em relação a 2005, chegando a 300 mil pessoas.

Cristiano: Certamente a Parada de Belo Horizonte é uma das mais politizadas do Brasil, porque aborda os direitos dos homossexuais. E por ser um momento de exaltar o orgulho GLBT, muitos gays que moram nas favelas e são repreendidos por suas famílias vêm para a Parada e podem se expressar, mostrar sua homoafetividade. Pra gente isso é maravilhoso, porque o gay sai da Parada sabendo que tem direitos e que pode ter orgulho de ser gay.

Agência RJC: Ricardo, nesses anos que você tem dedicado à militância, como avalia o desenvolvimento do movimento GLBT no Brasil?

Ricardo: Tem avançado, com pequenos passos. Eu entrei no movimento junto com meu irmão, que também é homossexual. Ele tem 42 anos e é sociólogo. Quando ele tinha a minha idade, ele com 28 e eu com 14, já me levava para o Grupo Dignidade, em Curitiba, que foi onde eu comecei a me engajar. Lá eu via e sentia as dificuldades: não era permitido sequer dar um beijo! Naquela época não tinha uma lei, não tinha um centro de referência, não tínhamos direito a uma sede. A gente se reunia na casa do presidente do grupo, que era um apartamento minúsculo.

A minha avaliação, hoje, é positiva, tanto politicamente quanto corporalmente. Hoje nós podemos andar abraçados na rua – basta ter coragem, porque o preconceito ainda é muito grande. É claro que não podemos ficar arriscando a pele, correndo o risco de levar pedrada e quebrar um dente. Crimes de homofobia acontecem. Apesar disso, acredito que houve avanços, e isso é fruto da resistência de muitos gays, alguns já falecidos. Eu até me emociono ao lembrar do Clô, um travesti de Florianópolis que foi brutalmente assassinado. Ele foi uma das pessoas que mais me ajudou. Ele dizia: “Ricardo, você está no caminho certo. Eu vou te mostrar o que é ser político”. Pessoas como o Clô, o Edson Neris [morto por um grupo de skinheads em São Paulo] e o Adamor Guedes [ativista do movimento GLBT no Amazonas, também assassinado] são gays que, infelizmente, não poderão ver o que a gente está conquistando.

Na legislação também temos marcos importantes. Em Minas existe a lei estadual 14.170 [coíbe discriminação por orientação sexual], de 2002, e em BH foi instituída a lei municipal 1.672 [penaliza os estabelecimentos que discriminam pessoas por orientação sexual]. Outra grande vitória do movimento é o Centro de Referência Homossexual de Minas Gerais, bancado pelo governo estadual, dentro da SEDESE [Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Esportes]. A coordenadora será Walkíria La Roche, da ASSTRAV [Associação de Transexuais e Travestis]. Não existe em nenhum outro lugar do Brasil um centro de referência bancado pelo poder público estadual como esse. O centro terá um poder de articulação e um suporte maior. A Walkíria terá, inclusive, sua carteira de trabalho assinada pela primeira vez. Isso pra nós é uma conquista.

Mas nós precisamos avançar mais. Ainda existe muita hipocrisia. E a gente vem justamente pra quebrar essa hipocrisia. As evoluções existem e vão existir muito mais. Nós vamos conseguir a parceria civil sim, nós vamos conseguir criminalizar a homofobia sim. É um direito humano nosso, e a sociedade, historicamente, nos deve isso. A criação de espaços institucionais de referência da diversidade sexual não é um favor do poder público. Somos cidadãos dessa república, somos 10% da população e pagamos impostos como todo mundo. E porque nossos direitos fundamentais são violados? Não queremos nem menos, nem mais. Queremos direitos iguais.

Contato: cellosmg@bol.com.br | www.cellosmg.com.br | (31) 3277-6954

Fique por dentro! A 9ª Parada do Orgulho GLBT de Belô começa às 11h do dia 16 de julho, na Praça Sete, entre as ruas São Paulo e Carijós.



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