Intelligentsia homossexual e militância gay no Brasil:



ARTIGOS
8. Intelligentsia homossexual e militância gay no Brasil:
De taturana a borboleta: a metamorfose de um antropólogo enrustido em militante gay

Introdução
1977 pode ser considerado como a data inicial do Movimento Homossexual Brasileiro: neste ano, a convite do advogado gaúcho-carioca, João Antônio Mascarenhas, o editor do Gay Sunshine, Winston Leyland, faz uma visita ao Brasil, sendo cancelada sua conferência na Universidade, mas recebendo enorme divulgação na imprensa nacional . Estimulados por este evento, alguns intelectuais gays do Rio de Janeiro e São Paulo fundam em abril de 1978 o primeiro e até hoje principal jornal homossexual brasileiro, O Lampião, o qual serve de veículo e reforço para a fundação em São Paulo, no ano seguinte - fevereiro de l979 - do primeiro grupo brasileiro de militância gay - o Somos, que adotou o mesmo nome da pioneira revista homossexual publicada na América do Sul pela Frente de Libertação Homossexual da Argentina(1).
Nestas quase duas décadas de afirmação homossexual, mais de uma dezena de intelectuais gays publicaram artigos e livros tendo a homossexualidade como tema - ensaios literários, pesquisas e estudos sobre diferentes aspectos da subcultura gay no Brasil(2). Mais da metade destes autores ostentam em comum, além da orientação homossexual, a particularidade de terem algum tempo de suas vidas militado no MHB - o Movimento Homossexual Brasileiro - ou participado de jornais e revistas de afirmação homossexual. Entre estes autores, destacam-se: Adão Costa, Agnaldo Silva, Antônio Chrisóstomo, Darci Penteado, Edward MacRae, Francisco Bittencourt, Gasparino da Matta, Glauco Mattoso, Hélio Silva, Herbert Daniel, Jean Claude Bernadet, João Antônio Mascarenhas, João Silvério Trevisan, Luiz Mott, Nestor Perlongher, Richard Parker(3).
Esta comunicação faz parte de um projeto mais amplo que pretende resgatar as biografias e produção bibliográfica destes autores, privilegiando o posicionamento teórico dos mesmos na polêmica da afirmação homossexual, salientando seu envolvimento enquanto críticos ou militantes dos grupos gays pertencentes ao Movimento Homossexual Brasileiro.
Esta pesquisa teve como inspiração a seguinte constatação : por que nestes primeiros vinte anos de existência no Brasil, desta brilhante e promissora constelação de estrelas homossexuais, apenas eu, estrelinha de luz opaca, continuo até hoje engajado de corpo e alma no MHB? Como explicar o próprio desaparecimento do jornal o Lampião após três anos de retumbante sucesso? O que levou algumas destas lideranças gays a abandonarem o movimento homossexual, uns se tornando ativistas nas ONGs/AIDS, outros, em maior número, aposentados das lutas populares? Como aqueles intelectuais de primeira hora e os ultimamente identificados com os estudos gays, avaliam a atividade política da atual Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis?
Decidi começar o projeto "Intelligentsia homossexual e militância gay no Brasil " com o registro de meu próprio itinerário : menos por vaidade, mais pela facilidade da pesquisa, reconstruo minha metamorfose de intelectual homossexual enrustido em militante gay. Assim fazendo, quero estimular que os demais gays constantes nesta lista também registrem sua bio-bibliografia, rompendo assim a conspiração do silêncio contra a homossexulaidade, lastimavelmente ainda tão forte nos países do terceiro mundo.

O complô do silêncio
Ao longo de minha formação acadêmica, entre 1965-1975, com graduação na Universidade de São Paulo, mestrado na Sorbonne e doutorado na Universidade de Campinas (Unicamp), não me recordo de ter ouvido professor algum, sequer uma vez, tratado em sala de aula da questão homossexual. Ao ingressar no curso de Ciências Sociais, recém saído do Seminário de Filosofia dos Dominicanos de S.Paulo, eu me definia um heterossexual pouco experiente com fortes tendências homossexuais, apesar de terem sido até então poucas e secretas as relações homoeróticas. Certa vez, numa caminhada noturna nas imediações do Jardim Trianon em São Paulo, (ainda hoje local de engates e prostituição homossexual), deparei-me com meu então circunspecto professor de Sociologia I, L.P. falecido na flor da idade, que como eu, extravasava nestes encontros fortuitos e anônimos sua homossexualidade clandestina. Coincidente-mente, meu primeiro "caso" morava na esquina dos fundos da Faculdade Maria Antonia, e também a poucos passos de minha sala de aula - onde os mestres continuavam a ignorar a questão homossexual, estava o badalado "João Sebastião Bar", a primeira boite que freqüentei em l966, onde alguns rapazes ousavam ficar de mãos dadas. Portanto, a homossexualidade arrodeava minha Universidade, a despeito de meus mestres antropólogos persistirem num verdadeiro complô do silêncio contra "o amor que não ousa dizer o nome" (Oscar Wilde).
Quando no segundo ano de Antropologia, para total surpresa minha, numa pesquisa de campo em nossa zona rural, aluno e o professor A.... viveram inesquecíveis duas semanas e meia de amor, uma relação homófila que o antropólogo Marshall Sahlins chamaria de "reciprocidade equilibrada de contactos face a face". Fora da alcova, discutia com meu Mestre, entre uma entrevista e outra, sobre esta persistente e deliciosa tendência que eu recusava aceitar, respondendo-me ele que de sua parte, não se inquietava, pois tais aventuras não eram nada "constitucional", tanto que vivia feliz com sua esposa. Talvez, inconscientemente, minha decisão em também casar-me tenha sido influenciada pelo exemplo deste colega um pouco mais velho, posto esperar no matrimônio encontrar o antídoto para um desejo que a sociedade não aceitava e que se tornava cada vez mais forte e enraizado, apesar de secreto e preocupante.
Casei-me em 1972. Um de meus padrinhos, U.B., docente na mesma instituição onde me formei, solteirão delicado e empedernido, sempre me pareceu também pertencer ao grupo dos cripto-sodomitas, embora jamais tenhamos tocado no segredo que ambos guardávamos debaixo de sete chaves. Aliás, esta dificuldade de inter-identifi-cação dos homossexuais compromete terrivelmente a formação de uma coalescência comunitária, posto não existir uma correspondência mecânica entre estereótipos e preferências sexuais: há muitos homens efeminados que são heterossexuais convictos, e machões que na cama se transformam em bichas loucas, daí a dificuldade das lésbicas e gays identificarem seus iguais.
No mesmo ano de meu casamento, entrei para o Departamento de Antropologia da Unicamp. Compartilhava a mesma sala com o antropólogo P.F. cuja homossexualidade era do conhecimento público, posto pertencer inclusive ao comitê editorial do jornal homossexual O Lampião. Novamente aqui repete-se a mesma ausência sequer de solidariedade mecânica: nenhum gesto de "arregimentação" do neófito para a confraria secreta, nenhuma cumplicidade ou transmissão de uma semente de consciência e auto-afirmação homossexual. Prevalece a lei hipócrita: "eu finjo que não sei e você finge que não é", e todos ficamos a salvo da fogueira.
Após cinco anos de casamento, duas filhas, um lar e longo período de abstinência homoerótica, me dei conta que estava vivendo uma triste comédia, sacrificando minha realização existencial mais profunda em função de convenções sociais. Conclui que era tempo de corrigir o mal passo que a sociedade heterossexista me obrigara a dar: tanto minha mulher quanto eu éramos bastante jovens para reorganizarmos nossas vidas. Só então ajuntei forças suficientes para assumir publicamente meu segredo: eu era mesmo predominante-mente homossexual.
A falta de esprit de corps entre os amantes do mesmo sexo tem raízes profundas e antigas entre nós, pois sendo a sodomia considerada pela tradição luso-brasileira como "o mais torpe, sujo e desonesto pecado", crime punível com a morte na fogueira, a estratégia de sobrevivência desta raça maldita (Proust) sempre foi o individua-lismo, o ocultamento e a clandestinidade. Diferentemente do judeu e de outras minorias que mesmo perseguidos, alimentam o orgulho de sua tradição, desenvolvendo mil mecanismos de socialização intra-grupal, a lésbica e o gay são seres solitários que rarissimamente podem contar com algum modelo de aprendizado de como ser homosse-xual. A biografia da maior parte dos membros desta minoria maldita inclue todo tipo de discriminação: insultos, surras, psicoterapia compulsória, expulsão de casa, assassinatos. Ainda hoje é comum ouvir-se de pais e mães brasileiros: "prefiro um filho morto do que viado". E dispomos de mais de um registro de famílias que mataram ou mandaram matar seus filhos quando descobriram que eram homossexuais. Há dois governadores na história recente da Bahia que o povo aponta como mandantes do assassinato, um de um filho, outro, do genro, ambos chibungos. Embora desde 1821, com a extinção do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, e de 1824, com a promulgação da primeira Constituição do Brasil, a sodomia tenha deixada de ser crime, não obstante, persiste ainda a mesma ideologia machista cristalizada no ditado nordestino: "bicha tem mais é que morrer!"(3)
Foi portanto, com este pano de fundo, e após muita angústia, choro e medo, que aos 31 anos de idade, ajuntei forças suficientes para assumir. Novamente, neste momento crucial de minha vida, a falta de solidariedade mecânica da categoria prevaleceu: escolhi meu colega de sala, P.F. expert em homossexualidade para ser o primeiro a saber de minha histórica decisão. Seu comentário espontâneo dá a medida da falta de solidariedade de nossa horda: "que loucura!", me disse este gay alienado.
Assumir representou para mim o encontro da felicidade, pois só então acreditei e vivenciei a possibilidade de ser feliz sem ter de fingir o que não era. Marquei meu coming out com um ritual de iniciação que em 1977 ainda era pouquíssimo praticado pela população masculina: furei a orelha esquerda. Este pequenino detalhe exibicionista, na época produzia enorme curiosidade entre os circunstantes, e apesar de minha barba cerrada e aparência viril, inúmeras foram as crianças que então me perguntavam se eu era homem e mulher, tão forte era em nossa cultura o antagonismo dos sexos.
Foi nesta época que escrevi meu primeiro ensaio sobre a homossexualidade [dos índios Tupinambá], passando somente a partir de então a aprofundar-me no conhecimento da história e antropologia da sexualidade, num esforço de encontrar respostas convincentes para calar os que questionavam o acerto de minha nova opção existencial. Apesar do respeito de várias ciências, tive e ainda tenho de enfrentar muita ignorância e desafetos, como de minha irmã mais velha e seu ex-marido, que cortaram relações comigo; ou de minha ex-sogra japonesa, tão minha amiga, que em seu leito de morte citou particularmente todos os parentes e agregados, omitindo meu nome. Foi nestes inícios de estudo sobre a sexualidade humana que tomei conhecimento que a cultura oficial primava por esconder ou negar a homossexualidade de seus luminares, inclusive dentro da própria Antropologia: jamais nenhum de meus mestres comentou que Margaret Mead e Ruth Benedict mantiveram por mais de uma década discreto relaciona-mento homoerótico, e que o próprio Malinowski registrou em seu diário de campo ter tido sonhos "homosex" com um nativo trobriandês. Foi a partir de então que pesquisando a literatura antropológica constatei nela forte homofobia - quer omitindo a presença desta variável erótica em sociedades onde existia, quer descrevendo-a com superficialidade ou de forma pejorativa.
Meus colegas da Unicamp passaram a acolher com simpatia meu primeiro caso homossexual, o que ajudou-me significativamente a enfrentar a separação de minhas duas filhas, na época com 4 e 2 anos, separação tornada ainda mais dificultosa devido a diversas restrições estabelecidas pelo Juiz, sob a alegação de que a presença de um pai homossexual prejudicaria seu desenvolvimento "normal". Por indicação de minha irmã doutora em psicologia , diferentemente do que desejava eu, não "abri o jogo" com minhas filhas a respeito de minha opção sexual. Aconselhou-me a deixar que elas próprias tomassem a iniciativa de perguntar quando tivessem curiosidade. Ledo engano, reconheço agora com pesar, pois infeliz-mente, também elas assimilaram a mesma homofobia dominante em todas as classes sociais, e a duras penas, só recentemente, já adultas, passamos a ter relacionamento mais amistoso.
Campinas, (SP), apesar de sua fama de ser a mais gay das cidades brasileiras, pareceu-me inadequada para meu novo estilo de vida. Após coabitar um ano com meu primeiro caso, paixão arrebatadora porém efêmera, deliberei mudar-me para Salvador, à procura do tempo perdido e esperançoso de encontrar na Baixa do Sapateiro o moreno mais faceiro da Bahia...
Minha fama de gay antecedera à minha chegada na terra dos Orixás, tanto que ao ser convidado como professor visitante na Universidade Federal da Bahia, o Coordenador do Mestrado em Ciências Sociais teria indagado à minha "madrinha-proponente" se sabia que eu era homossexual, ao que ela respondeu lembrando com bom senso que se estava julgando um curriculum acadêmico e não a vida particular do candidato. Considero-me um felizardo por não ter sido excluído ad limine de ser contratado, pois nos finais da década de 70 a homofobia, inclusive dentro da Academia, gozava foros de legalidade. É conhecido um antropólogo norteamericano, D.W., grande expert no estudo da homossexualidade, longamente citado por Marvin Harris, que ao candidatar-se a um posto na Universidade Federral de Santa Catarina, expurgou de seu curriculum vitae todas as publicações e pesquisas sobre a cultura gay, temeroso que viessem a prejudicá-lo. Numa de nossas universidades do Norte, há outro caso de um emérito antropólogo que no início e no final de carreira teve de enfrentar humilhante preconceito devido à sua discreta bi-sexualidade.
Mal transcorreu o primeiro mês de minha permanência na Bahia, conheci um estudante, hoje também antropólogo, com o qual mantive um caso por 7 anos seguidos. Certa vez, logo nos primeiros meses de namoro, contemplávamos comportadamente o por do sol no Farol da Barra, quando um machista desconfiando que éramos gays, nos insultou e agrediu-me com um bofetão em minha cara. Esta violência gratuita revoltou-me profundamente, acrescentando-se a ela a discriminação diuturna de que era vítima meu caso em sua família: sua mãe, funcionária pública de classe média, costumava repetir: "tem duas coisas que eu não suporto: bicha e muriçoca!", e seu pai chegou certa feita a ameaça-lo com um revólver se se confirmasse o boato de que era viado.
Após um ano na Bahia, em 1980, por ocasião da realização em São Paulo do I Encontro Brasileiro de Homossexuais, tomei coragem e publiquei o seguinte anúncio no nº20 do jornal O Lampião: "Gays baianos: rodem a baiana, tudo bem, mas deixem de ser alienados. Participem de um grupo de discussão sobre o homossexualismo. Para maiores informações escrevam para Luiz Mott", dando o endereço de meu apartamento. Este foi o ato de fundação do Grupo Gay da Bahia, a décima associação de homossexuais a ser criada no Brasil, a primeira do Nordeste, tornando-se nestes 16 anos de existência, a entidade mais dinâmica e que mais frutos vem colhendo na consolidação dos direitos humanos desta complexa e numerosa minoria, a um tempo tão oculta e discriminada.
Com a fundação do GGB tornei-me um militante gay, publicando cartas nos jornais e indo às TVs para denunciar os casos mais graves de preconceito e discriminação contra os homossexuais. Tal militância pública provocou reação nos mais tradicionalistas, não só no principal jornal do Norte e Nordeste, A Tarde, que por dezenas de vezes tem insultado com epítetos chulos à bicha mor da Bahia (sic), como também susceptibilizou a um velho professor da minha universidade, que numa reunião em que eu estava ausente, ao ser indicado meu nome como candidato à chefia, teria deixado escapar o comentário: "e viado pode ser chefe de Departamento?"
Logo ao iniciar a militância gay, dei-me conta que diferente-mente das demais minorias, que contavam com o apoio dos setores mais progressistas de nossa sociedade, inclusive da Igreja, os homossexuais não tinham a quem recorrer quando vítimas de precon-ceito e discriminação. Realizei ser urgente encontrarmos legitimi-dade junto à intellgentsia nacional, pois somente a Ciência podia garantir e afiançar aos mais intolerantes que também os homosse-xuais deviam ter seus direitos humanos respeitados.
Quando ainda estudava na Sorbonne, meu orientador Sidney Mintz, certamente desconfiando de minha secreta orientação sexual, passou-me cópia da histórica revolução da American Anthropological Association, de 1970, através da qual não só estimulavam-se pesquisas na área da homossexualidade, como também se denunciava a homofobia (no documento chamada de homo-erotofobia), pleiteando-se a imediata "legalização mundial de todos os atos sexuais consen-suais". Decidi então batalhar para que também no Brasil a comunida-de científica se posicionasse oficialmente sobre a questão homossexual.
Em seis anos, obtive a aprovação de sete moções por cinco diferentes associações científicas: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), Asso-ciação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). O que nos Estados Unidos foi resultado de duas décadas de militância de diferentes schollars gays, no Brasil, por falta de outros homossexuais acadêmicos assumidos, tenho a honra de ser autor único destas pérolas preciosas .
A primeira moção é de 1981, aprovada pela assembléia da SBPC em Salvador: os organizadores desta reunião haviam recebido diversas cartas anônimas ameaçando que "muito sangue iria correr" caso permitissem a realização de atos públicos em defesa dos direitos dos homossexuais, prova incontestável do quanto certos segmentos da sociedade nacional repudiam a ousadia dos pederastas de se organizarem em defesa da igualdade dos direitos civis. O Grupo Gay da Bahia tinha apenas um ano de existência e a "barraca dos gays" foi considerada a mais concorrida da reunião, além de termos conseguido lotar o circo das plenárias: nesta ocasião mais de 50 rapazes furaram a orelha, ainda uma grande novidade no Brasil, nossa estratégia anarquista de questionar a rigidez da divisão sexual da estética corporal. A maior vitória, contudo, foi a aprovação da seguinte moção:
"A Presidência e a Assembléia Geral da SBPC apoiam oficialmente a campanha contra todas as formas de discriminação sexual; opõem-se energicamente a todas as leis, códigos e posturas que, contrariamente à Ciência, rotulam o homossexualismo como patologia; resolvem que em suas próximas reuniões anuais haverá sempre espaço para debates interdisciplinares sobre a questão homos-sexual e comprometem-se a apoiar o encaminhamento do abaixo assinado da campanha nacional do Moviemento Homossexual Brasileiro contra a discriminação sexual junto aos órgãos governamentais competentes."
No ano seguinte, na reunião da ABA realizada na Universidade de Sâo Paulo, (1982), redigi texto mais abrangente, incluindo a defesa do principal pleito do movimento gay brasileiro naquele momento, a extinção do §302.0, da Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde, que rotulava o homossexualismo como "desvio e transtorno sexual". Ao ser anunciada na Assembléia Geral da ABA a "Moção pela liberdade sexual", uma fervorosa antropóloga indianis-ta, minha ex-colega da USP, não conteve o riso debochado, ignorando que as minorias sexuais representam mais de 10% de nossa população, enquanto os índios não chegam a 0,3%! Apesar de certa oposição por parte de alguns colegas mais moralistas, e a exclusão de um item do texto original (a respeito da naturalidade do homossexualismo - discussão complexa que divide os estudiosos essencialistas dos construtivistas sociais), foi aprovada a seguinte resolução:
"Considerando que todas as expressões sexuais, desde que respeitem a liberdade alheia, são igualmente válidas e legítimas; que a discriminação sofrida pelas minorias sexuais consideradas desviantes atropela o direito de todo ser humano de fazer sexo como e com quem quiser; resolve apoiar o direito das minorias sexuais de se organizarem da mesma forma que os demais grupos minoritários e apoiar a campanha nacional de repúdio ao §302.0 da CID da OMS."
Neste mesmo ano conseguimos aprovar uma segunda moção pela SBPC, esta ainda mais ambiciosa e abrangente:
"Considerando a pequena produção científica no Brasil de pesquisas e trabalhos relativos à sexualidade humana em geral e à homossexualidade em particular, diferente-mente do que já ocorre nos países mais desenvolvidos; que os projetos de pesquisas sobre estes temas têm sido muitas vezes mal recebidos, discriminados e considera-dos irrelevantes ou faltos de interesse científico, apesar da inquestionável qualidade científica e rele-vância social; resolve usar de todo empenho, através de ofícios às fundações, instituições de pesquisas e órgãos financiadores, para que sejam acolhidos com idêntica objetividade e sem discriminação os projetos que tratem de temas relacionados à sexualidade e à homossexualidade, instituindo-se prêmios e estímulos aos projetos sobre esses temas."
1984 foi o ano mais frutífero no compromisso das associações científicas na alforria dos homossexuais: aprovamos três moções! Em Vitória, na reunião da ABEP, ratificou-se a seguinte resolução:
"A Associação Brasileira de Estudos Populacionais declara-se contra todas as expressões de preconceito e discriminação de que são vítimas os homossexuais de ambos os sexos em nossa sociedade; apoia a campanha nacional de repúdio ao §302.0 da CID da OMS."
Entre os colegas que vieram parabenizar-me pela corajosa iniciativa recordo-me de um venerando casal de professoras lésbicas do Paraná, já em bodas de prata de um casamento secreto mas conhecido e comentado por quantos as conheciam. O que se passava no íntimo destas respeitáveis senhoras, vendo um petulante colega de orientação sexual expor-se publicamente, é difícil de imaginar. Talvez jamais tivessem imaginado estarem presentes, e participarem com seu voto de aprovação, a este início da lei áurea dos filhos de Sodoma e Gomorra.
Na reunião da ANPOCS em Águas de São Pedro, (SP, 24.10.1984), além de se condenar o famigerado §302.0, aprovou-se moção que dizia:
"Considerando a odiosa e violenta discriminação de que são alvo os homossexuais de ambos os sexos em nossa sociedade, resolve opor-se a todas expressões de preconceito e discriminação contra os gays e lésbicas e incentivar junto aos centros de pós-graduação uma maior produção intelectual na área de sexualidade e da homossexualidade."
Meu principal revés ocorreu em Recife, na Reunião da Asso-ciação Brasileira de Psiquiatria (13.10.1984), onde o plenário aprovou tão somente a primeira parte da moção, a saber:
"Considerando que a homossexualidade em si não implica em prejuízo do raciocínio, estabilidade, confiabilidade ou aptidões sociais e/ou vocacionais, a ABP e suas filiadas se opõem a toda discriminação e preconceito, tanto no setor público, quanto no privado, contra os homossexuais de ambos os sexos."
Não concordaram contudo os psiquiatras com a segunda parte da moção, já aprovada pelas citadas sociedades científicas, que pleiteava o fim da classificação da homossexualidade como desvio e transtorno sexual. Certamente temiam nossos profissionais da psique perder seus numerosos clientes "desviantes sexuais", daí o reacionarismo de seu voto. Postura, aliás, que passados poucos meses, demonstrou estar equivocada, tanto que aos 9 de fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Medicina levando em conta as importan-tes moções das citadas associações científicas, assim como mais de 16 mil assinaturas de intelectuais, políticos e famosos artistas de todo o Brasil, decretou a extinção do anti-científico §302.0, deixando a partir desta data de existir em nosso país qualquer diploma ou postura que se refira ao homossexualismo como patologia. Vitória crucial em favor dos direitos humanos de milhões de cidadãos que devem às associações científicas importante papel na destruição deste estigma inquisitorial recuperado pela medicina-legal da época vitoriana. O Brasil antecipou-se,portanto, em 9 anos , à própria OMS, que só em 1994 revogou o vetusto § 302.0 da CID. Na última reunião da ABA, Salvador/1996, obtive a aprovação de outra moção favorável ao Movimento Homossexual Brasileiro:
"Considerando que o respeito ao princípio de alteridade é um dos alicerces da Antropologia, e da convivência harmoniosa entre os cidadãos, e que todas as diferentes orientações sexuais e organizações familiares devem gozar dos mesmo direitos e deveres garantidos por lei; a Associação Brasileira de Antropologia dá seu apoio oficial ao Projeto de Lei n.1151/95, de iniciativa da Deputada Marta Suplicy, que legaliza o Contrato de União Civil entre pessoas do mesmo sexo, estimulando aos Parlamentares sua aprovação por representar um avanço indispensável aos direitos humanos universais. "
Concomitantemente à aprovação destas moções, venho desenvolvendo incansável programa de pesquisas e publicações tendo a homossexualidade como tema. Já passam de sessenta meus artigos e livros nesta área, privilegiando notadamente a Etnohistória da subcultura gay no mundo luso-brasileiro a partir do século XVI, tendo como fonte principal os milhares de processos dos sodomitas perseguidos pela Inquisição de Lisboa. Eis uma pequenina amostra dos títulos de alguns destes ensaios: "Somítigos, tibira e quimbanda: A prática da homossexualidade entre brancos, índios e negros na Bahia e Pernambuco nos séculos XVI e XVII"; "A Homosse-xualidade: Uma variável esquecida pela Demografia Histórica"; "Escravidão e Homossexualidade"; "Pagode Português: A subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais"; "Cupido em Sala de Aula: Pedofilia e Pederastia no Brasil Antigo", etc., etc. A lista completa destes trabalhos encontra-se na bibliografia final.
Venho publicando igualmente trabalhos sobre diferentes aspectos da subcultura gay contemporânea, a começar por uma bibliografia constante de mais de 260 títulos consagrados à homossexualidade no Brasil, seguida de diversos artigos consagrados à tipologia dos gays brasileiros, à formação da identidade marginal deste segmento populacional - e para não me acusarem de discriminar as mulheres homossexuais, lancei O Lesbianismo no Brasil, até agora o único livro consagrado exaustivamente ao tribadismo em nossa literatura, história e na atualidade. Com o surgimento da Aids, consegui em 1986 a aprovação da primeira moção brasileira de defesa dos direitos humanos das pesoas com HIV/AIDS, através da qual a ABA resolveu
"enfatizar a necessidade do poder público em divulgar, em todo território nacional, informações esclarecedoras a respeito da Síndrome da Imuno-deficiência adquirida, com vistas a impedir a estigmatização de que têm sido alvo os gays",
E finalmente, na última reunião da mesma ABA, (Abril-1996), aprovou-se mais esta resolução de contra a "aidsfobia":
"Considerando que a epidemia da Aids desencadeou graves manifestações de preconceito e discriminação contra os chamados "grupos de risco" e portadores de HIV/AIDS; considerando o papel crucial da Antropologia na explicitação das variáveis sócio-culturais relacionadas à expansão e prevenção do HIV/AIDS; a Associação Brasileira de Antropologia manifesta seu apoio aos direitos de cidadania plena dos portadores de HIV/AIDS e aos membros dos chamados "grupos de risco", opondo-se a todas manifestações de preconceito e discriminação de que são vítimas, estimulando aos Órgãos Governamentais e Entidades Financiadoras, investimentos mais substanciosos nas pesquisas sócio-culturais que têm a Sexualidade Humana e a Aids como tema."
Tenho igualmente produzido alguns trabalhos nesta nova e vital área do conhecimento, analisando o preconceito manifestado por diferentes denominações religiosas e inclusive por nossa classe médica em relação à inicialmente chamada peste gay, assim como os problemas decorrentes da penetração do preservativo no Brasil contemporâneo, e finalmente, sobre o significado e tratamento dado ao esperma na subcultura luso-brasileira desde os tempos da Inquisição à atualidade.
Creio ser este o momento de registrar que por mais de uma vez meus trabalhos, por tratarem de temas tão tabus e insólitos, sofreram quer censura de frases, títulos ou expressões, considera-dos impróprios para publicações científicas, quer o engavetamento tout court, como ocorreu com o artigo "Gilete na carne: Etnografia das auto-mutilações dos travestis da Bahia", que o então diretor da Revista de Antropologia da USP, J.B.B.P., recusou publicar, sem dignar-se responder às minhas cartas de cobrança, e que veio posteriormente a ser divulgado pela revista Temas, do Instituto de Medicina Social e Criminalística do Estado de São Paulo. Antropólogo discriminando antropólogo!
Sempre com o escopo de abrir espaço dentro da Academia para o estudo científico da Homossexualidade - estratégia crucial na consolidação do reconhecimento da igualdade de direitos civis por parte da sociedade global - desde 1986 venho oferecendo cursos, quer na Graduação, quer no Mestrado da Universidade Federal da Bahia, tendo a sexualidade e em particular a etnohistória da homossexualidade e a Aids como temas: realizo uma verdadeira cruzada nacional pela divulgação destes assuntos, tendo já proferido palestras sobre a Etnohistória da Homossexuali-dade nas Universidades Federais do Amazonas, Pará, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Piauí, Alagoas, Sergipe, Mato Grosso, Rondônia, Goiás, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, sempre seguidas de farta distribuição de camisinhas e folhetos de prevenção da Aids. Desde 1989 fui nomeado membro da Comissão Nacional de Controle da Aids do Ministério da Saúde, sendo a primeira e ainda única vez que o Diário Oficial publicou a abominável palavra gay, posto ter sido nomeado na qualidade de "Presidente" do Grupo Gay da Bahia.
Na 15ª Reunião da ABA, em Curitiba (1986). concretizei um antigo sonho, de instituir o grupo de trabalho Antropologia da Sexualidade que vem reunindo dezenas e dezenas de pesquisadores nas reuniões subseqüentes da Campinas e Florianópolis, onde foram apresentadas variegadas comunicações sobre diferentes aspectos da homossexualidade feminina e masculina e mais recentemente, sobre Aids. No baile de confraternização da Reunião da ABA em Campinas, o autor destas linhas e um seu orientando H.S. após distribuírem centenas de preservativos e folhetos entre os participantes, decidiram imitar os casais heterossexuais, dançando abraçados, uma estratégia para forçar aos circunstantes à convivência com a igualdade de direitos dos homossexuais. Apesar de muito zum-zum-zum, conseguimos terminar a valsa ilesos! Nada como o relativismo cultural das festas dos antropólogos!
Completaria este rol de atividades acadêmicas destinadas a incluir a homossexualidade como tema de pesquisa, a orientação de algumas teses de mestrado sobre esta temática, como a de Ricardo Calheiros Pereira (UFBa, 1988), O Desperdício do Sêmen, e a de Lígia Bellini, A coisa obscura: Mulher, Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial (Brasi-liense, 1989), a de Neuza Oliveira, "O Travesti no espelho da mulher, (Ed.UFBA,1994), entre outras.
À guisa de conclusão, permitam-me transcrever algumas passagens de meu texto Direitos humanos dos homossexuais, publicado no BOLETIM DA ABA de outubro de 1987. Após denunciar a campanha sistemática de difamação e estímulo à violência patrocinado pelo jornal A Tarde, de Salvador, contra os homossexuais - onde chegaram a publicar frases como "matar viado não é homicídio, é caçada", e esta "mantenha Salvador limpa, mate uma bicha todo dia", e mais outra: "os homossexuais são degenerados: não se devia convidar esses invertidos para aparecer em público na televisão", eu sugeria aos antropólogos brasileiros que prestassem um pouco mais de atenção e manifestassem um pouco mais de solidariedade a esta abominada minoria. O que fazer, concretamente? Eis algumas sugestões: Primeiro, erradicar no seu meio, em sala de aula, na sua família, em si mesmo, a homofobia. Não tolerar e reagir a qualquer discrimi-nação ou preconceito contra os gays, do mesmo modo como lutamos contra o etnocentrismo, racismo, machismo, etc. A ditadura do heterossexualismo é tão etnocêntrica e cruel quanto o machismo ou a teoria da supremacia racial. Segundo, solidarizar-se efetivamente com a defesa dos direitos de respeito e igualdade dos homossexuais. É inaceitável que num país onde o racismo tornou-se crime inafian-çável, onde pessoas já foram presas e pagaram altas multas por ter chamado de negão a representantes da raça negra, ainda é impunemen-te estampado no principal jornal baiano, textualmente, a declaração seguinte: "Luiz Mott, a bicha mor da Bahia, detentor nacional da taça frescura, é um atentado ao pudor de nossa cidade. Devia ser declarado pelo Presidente da Câmara de Salvador persona non grata: ele é um travesti repelente, sem um pingo de dignidade humana e a maior obscenidade da Bahia"(5).
Apesar de tanta ignorância e violência anti-gay, somos obrigados a reconhecer que também no Brasil um bom caminho já foi andado na moderna consolidação da garantia de igualdade de direitos civis das lésbicas e gays. Não conseguimos incluir na atual Constituição Federal a proibição de discriminação por orientação sexual, não obstante, já dispomos hoje de 74 Leis Orgânicas Municipais, de Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo a Teresina, onde proíbe-se expressamente a discriminação baseada não apenas no sexo, como também na orientação sexual. Há 170 anos, a legislação punia o amor homogêneo (Edward Carpenter) como crime equiparado ao regicídio: hoje nos códigos dos países mais modernos do mundo, inclusive em três de nossas principais capitais, a lei protege os gays contra a discriminação. Apesar destas conquistas, mentalidades e preconceitos tão arraigados não se mudam por decreto, sobretudo quando o Sumo Pontífice do principal credo de nosso país insiste em voltar as costas às conquistas científicas, e proclama ex cathedra que "a homossexualidade é intrinsecamente má". Por conta da homofobia, mais de 1300 homossexuais foram barbaramente assassinados nos últimos dez anos, vítimas de crimes sexuais e da intolerância machista. Um gay é assassinado a cada quatro dias no país! O Brasil é o campeão mundial de assassinatos de homossexuais(6). Daí a urgência de investir mais em pesquisas sobre a sexualidade humana, desvendar as raízes do machismo em nossa sociedade, utilizar o instrumental teórico e metodológico da Antropologia a fim de encontrarmos pistas e respostas de como erradicar de nossa cultura judaico-cristã essa intolerância e crueldade contra uma significativa porção da humanidade cujo único pecado é amar o próprio sexo.
Concluo narrando um episódio ocorrido há poucos anos envol-vendo um gay assumido com um enrustido. Um velho antropólogo e fotógrafo francês, P.V., radicado de longa data na Bahia, falecido em l995, ao ser indagado privadamente por outro antropólogo anglo brasileiro P.F. o motivo que o levara a estudar a diáspora africana, respondeu sem meias palavras, que impulsionara-o o prazer de dar para os negros. Sabedor portanto de sua homossexua-lidade, certa feita, delicadamente, sugeri a este negrófilo que escrevesse quando menos uma página a respeito da homossexualidade, posto tê-la intensamente vivido pelos quatro cantos por onde andou. Irritou-se a velha tia, por julgar invadida sua privacidade, posto jamais ter percebido que assumir a própria homossexualidade, pode significar crucial gesto político na destruição do machismo patriarcalista. Pensando ofender-me, acusou-me de ser o Dom Quixote da homossexualidade... Tomei o epíteto não como ofensa, mas como elogio, e gostosamente assumo o ideal de ser um guerreiro incansá-vel em favor das minorias sexuais. Só que infelizmente, nossos inimigos não são moinhos de vento, nem tigres de papel: são homófobos violentos, capazes de desferir até cem facadas no corpo da bicha, como aconteceu há poucos anos com o teatrólogo Martinez Correa, ou assassinar mais de dez viados, como confessou o "monstro do Trianon".

NOTAS
1. MacRae, Edward. A Construção da Igualdade. Identidade e Política no Brasil da Abertura. Campinas, Unicamp, l990.
2. Mott, Luiz "A Homosexualidade no Brasil: Bibliografia", Latin American Masses and Minorities, Madison, Princeton University, 1987:529-609; "Teses Acadêmicas sobre a Homossexualidade no Brasil", SALALM, XXXIX Seminar on the acquisition of the Latin American Library Materials, Salt Lake City, 1994
3. Grootendorst, Sapê. Literatura Gay no Brasil? Dezoito escritores brasileiros falando da temática homoerótica. Tese de Qualificação, Universidade de Utrecht, l993.
4. Bicha e viado são os termos mais comuns para referir-se aos gays no Brasil em geral, e chibungo é termo de origem bantu, regionalismo da Bahia, inspirado na mitologia Congo- Angola.
5. A Tarde, 7-7-1989.
6. Mott, Luiz. Homofobia: Violação dos Direitos Humanos de Gays, Lésbicas e Travestis no Brasil. S.Francisco, Repport da International Gay and Lesbian Human Rights Comission, S.Francisco, l996


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