Torturas e Heresias na Casa da Torre: Bahia, Séc. XVIII(1)

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13. Torturas e Heresias na Casa da Torre: Bahia, Séc. XVIII(1)
Foi na Torre do Tombo - o maior arquivo português, manancial inesgotável de manuscritos relativos ao Brasil Colonial - onde encontramos um dos documentos mais chocantes de todo nossa história: são 12 folhas manuscritas por um ilustre desconhecido, José Ferreira Vivas, que nos finais do século XVIII envia da Bahia de Todos os Santos ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa uma denúncia com 47 itens contra o homem mais rico do Brasil, Garcia D'Ávila Pereira Aragão , herdeiro e proprietário da famigerada Casa da Torre.
Das 47 denúncias, 26 itens referem-se a torturas e castigos crudelíssimos aplicados pelo Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão contra seus escravos - cujos requintes de crueldade chocam mesmo ao mais empedernido coração! - sendo 21 os itens que incriminam o proprietário da Casa da Torre em blasfêmias e irreverência contra a religião católica - a única permitida na época em toda cristandade.
Garcia D'Ávila Pereira Aragão nasceu em Santo Tomás do Iguape aos 4 de outubro de 1735, na fazenda de seu avô Garcia D'Ávila Pereira. Casou-se duas vezes, primeiro com D. Teresa Cavalcanti de Albuquerque, filha do alcaide-mor da Bahia, e após sua morte, realizou segundas núpcias com D. Josefa Maria da Conceição e Lima, descendente da tradicional família Rocha Pitta. Um seu contemporâneo informava que sua segunda mulher jamais se arriscou a fazer vida conjugal na Casa da Torre com o 4o Garcia D'Ávila, preferindo ficar mais sossegada, morando na residência paterna.
Segundo avaliação do historiador da Casa da Torre, Pedro Calmon, "sem nenhuma dúvida, foi o mais rico dos filhos do Brasil, inteligente e arrebatado: o último varão da estirpe dos Garcia Dávila..." Foi agraciado com a comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo e Mestre de Campo dos Auxiliares da Torre (1753) e descrito por seus contemporâneos como "cavaleiro selvagem na forma exterior".
A divulgação deste documento da Torre do Tombo justifica-se por três razoes principais: primeiro por revelar o lado mais cruel e sanguinário da escravidão, sendo este rol de atrocidades, certamente, o relato mais violento e pungente que se tem notícia na história do Brasil, quiçá em toda história do escravismo no Novo Mundo.
A segunda justificativa de se divulgar este manuscrito é revelar as blasfêmias e práticas anti-religiosos perpetradas por um destacado membro da elite colonial, comprovando os limites reais da autoridade aterradora do Tribunal da Inquisição, que apesar de poder confiscar os bens, açoitar e condenar à fogueira os hereges e heterodoxos, não chegava a inibir palavras e ações francamente hostis à Santa Religião. Saiba o leitor que malgrado a gravidade destas denúncias, o Santo Ofício nada fez contra este mau cristão, agindo com a mesma indiferença, igualmente, em relação a certos blasfemos despossuídos de riquezas.
A terceira razão que justifica a divulgação deste documento neste livro tem a ver com o que ele diretamente nos informa, e de primeira mão, sobre a própria Casa da Torre: ao descrever as torturas e sacrilégios ali praticados por seu terratenente, o denunciante fornece, aqui e acolá, dados concretos sobre as instalações, espaços, utensílios e personagens que compunham o dia a dia e se movimentavam dentro desta portentosa propriedade senhorial do Recôncavo Baiano.
Sugiro que o leitor preste atenção não apenas nos atos cruéis e irreverentes praticados por Garcia D'Ávila Pereira Aragão , mas também atente para os aspectos materiais e sociais que servem de pano de fundo a este espantoso relatório. À guisa de contribuição para se reconstituir tal paisagem, no final do manuscrito enumero e esclareço alguns elementos citados no documento que permitem-nos visualizar o interior, as redes de relação e o quotidiano da famigerada Casa da Torre.

DOCUMENTO : Denúncia ao Santo Ofício contra Garcia Dávila Pereira Aragão


"Senhor Reverendo Vigário Antônio Gonçalves Fraga
Meu Senhor: a Vossa Mercê deponho, como Comissário do Santo Ofí-cio, as heresias ditas e feitas pelo Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão, contra Deus Nosso Senhor e os Santos, desencar-regando nesta parte a minha consciência com V. Mercê, como assim man-dam e ordenam os Editais do Santo Ofício, e constam dos itens seguintes:

Heresias que faz aos seus escravos

Item 1. Que a um escravo crioulo chamado Hipólito, de idade de 16 anos, pouco mais ou menos, o mandou montar em um cavalo de pau, e mandou lhe amarrassem em cada pé uma arroba de bronze, ficando com os pés altos, e o mandou deitar sobre o cavalo, mandando dois negros açoitá-lo, que o fizeram por sua ordem rigorosamente, desde pela manhã 8 horas até as 11 horas do dia; que depois disto feito, o mandou amarrar com uma corda pelos pulsos dos braços juntos, e passada a outra parte da corda ao mourão da casa, o foram guindando até o porem com os pés altos fora do chão, braça e meia pouco mais ou menos; e mandou passar-lhe uma ponta da corda nos testículos ou grãos, bem apertada e na outra ponta Ihe mandou pendurar meia arroba de bronze, ficando no ar para lhes estar puxando os grãos para baixo; que o pobre miserável dava gritos que metia compaixão, e ao mesmo tempo, lhe mandou pôr uns anjinhos nos dedos dos pés ajuntando-os, que tal foi o aperto, que lhe fez o dito Mestre de Campo, que lhe ia cortando os dedos, e esteve com estes martírios obra de duas horas, que por Deus ser servido não morreu desesperado o arrenegado.
Item 2. Que a uma escrava mestiça chamada Lauriana de idade de 25 anos, pouco mais ou menos, a castigava o dito Mestre de Campo muitas vezes, dando-lhe com uma palmatória de pau pela cara e queixadas do rosto, levantando a mão com a maior força que podia, e andava esta con-tinuamente com o rosto inchado, procedido de semelhante castigo.
Item 3. Que querendo noutra ocasião castigar a mesma dita escrava acima, mandava buscar uma turquesa grande de sapateiro, e a mandava chegar a si, trepando-se ele, o dito Mestre de Campo em lugar mais alto, e metendo a turquesa aberta na cabeça da dita escrava, tudo quanto apa-nhava de cabelos fixando a turquesa, lhes arrancava de uma vez.
Item 4. Que em outra ocasião mandou pôr na dita escrava Lauriana um ferro no pescoço, com duas vergas levantadas, em alto, que teriam mais de palmo e meio, e em cada uma delas uma campainha e uma corrente muito grossa no pé, passando-lhe duas voltas pela cintura, indo a ponta dela atar às campainhas, e mais uns grilhões nos pés, como (se estivesse peada) man-dando-a assim cortar capim para os cavalos dali a meia légua, e às vezes mais longe, sem lhe dar de comer e sempre morta a fome; e por não trazer em um dia de domingo com brevidade e pressa o capim, a mandou açoitar numa cama de vento por dois escravos, Bastião e Domingos, cada um com suas correias açoitando a um tempo, que cansados estes, mandou continuar os açoites por outros dois, Narciso e Geraldo, e cansados estes mandou continuar pelos primeiros Bastião e Domingos, assistindo ele, dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão a todo este maldito suplício e martírio que teria no chão meio pote de sangue. E depois de tudo isto feito na dita cama de vento, amarrado cada pé e cada braço no ar por sua ponta de corda, com todos os ferros ditos acima, mandando aos ditos escravos a desatassem todos juntos a um tempo de pancadas, para cair acima assim com os peitos no chão do sobrado e levar grande pancada, como assim o fizeram; e depois a mandou meter numa prisão com ordem passada de duzentos açoites cada dia, mandando-lhe levar cada dia uma menina, parva quantia para comer, não consentindo-lhe desse água para beber; e no outro dia lhe mandou dar outra parva quantia de água, sem comer, tendo esta uns anjinhos nos dedos das mãos com todos os ferros já declarados e para comer e beber aquela parva quantia, que lhe davam, se lhe punha encima de um banquinho para comer como cachorro ou outro animal, com a boca no prato, lambendo ou apanhando com os beiços o que podia, por ter as mãos e dedos presos, sem consentir mais lhe fizessem fogo (de noite) e nem lhe dessem quanto o pedisse, para senão agüentar do frio muito que ali fazia no lugar onde tinha sido presa. E depois de tudo isto feito, a mandou amarrar pelos dois braços, cada qual com uma corda, e o guindando em alto no oitão da casa, com os braços abertos, como crucifi-cado, ficando-lhe os pés a uma braça em alto do chão, ele mandou no mesmo tempo amarrar uma arroba de bronze em cada pé, para estarem puxando mais para baixo, com os mais ferros já declarados, enrolados pela denturada (sic) corrente de guindar pedras ou caixas de açúcar donde a teve nesta forma desde o meio dia até às quatro ou cinco da tarde, urinando-se por si, com semelhante castigo, tolhendo-se-lhe também a fala, por lhe estar estirando os nervos da garganta, como ela assim o disse saindo deste martí-rio mais morta que viva. E mandou chamar Cosme Pereira de Carvalho e Luiza Mendes, pardas já de idade, para verem a obra de caridade que es-tava fazendo àquela pobre cristã, e quando elas lhe pediam abreviasse já aquele castigo ou martírio, dizia que aquilo não era nada. E se não a tivesse comprado um pardo chamado Bernardo da Rocha, e a levasse para o Ser-tão, teria morrido mártir nas mãos daquele Turco.
Item 5. Que a um escravo chamado Caetano, mestiço de idade 30 anos, pouco mais ou menos, pelo apanhar tocando uma rabeca em sua casa não estando ele ali, o mandou pegar e amarrar em uma cama-de-vento, ficando--lhe o corpo no ar, com os braços e pernas abertas atadas com argolas com suas cordas, e o começaram a açoitar desde as dez horas do dia até às quatro horas para as cinco da tarde, por dois açoitadores. E cansados estes, entra-ram outros dois, tudo a um tempo, como lhe dirá o mesmo açoitado, e em todo este tempo dos açoites, desmaiava o pobre mestiço, ficando sem fala em cujo tempo lhes estava o dito Mestre de Campo botando limão com sal nos olhos, com uma pena de galinha, por sua própria mão, que despertando o dito mestiço com o limão e sal nos olhos, mandava continuar com os açoi-tes, botando-lhe ao mesmo tempo cocos de água fria pelas nádegas, como se fosse um bárbaro com tão horrendo castigo. E depois de açoitado nesta forma, que já não tinha carne nas nádegas, o mandou pôr com uma argola pelo pescoço, ficando em pé não direito, porém quase encurvado, e assim o teve até às dez horas da noite, que por vários peditórios o aliviou da argola, indo dormir em uma corrente, sem querer que ninguém o curasse. E no outro dia de manhã, foi para uma argola, onde esteve todo o dia nu no sol sem comer, nem beber, até às nove horas da noite, que metia compaixão! E no cabo de dois dias, ninguém podia parar junto dele com o infecto que vinha das feridas, que eram tantos os bichos de moscas que parecia que estavam em riba de um defunto já cheio de corrupção. Escapou (vivo) pelo muito trato que tiveram dele suas tias Teresa e Clemência, tam-bém elas testemunhas.
Item 6. Que querendo o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão ir pescar por seu divertimento, mandou pôr uma escrava chamada Páscoa a uma lagoa ou rio apanhar isca para a dita pescaria. E por não chegar ao tempo que ele queria, veio para casa e mandou vir uma escada, mandando-a pôr de alto a baixo, e mandou amarrar a dita crioula na escada com a cabeça para baixo, pés para cima, mandando-lhe meter a cabeça por dentro do derradeiro degrau da escada, ficando-lhe a cabeça ou a testa tocando no chão, e o degrau bem em riba do toutiço (nuca), ficando com a cabeça arqueada, que quase morre afogada ou sufocada, com o de-grau que lhe ficava no cangote e dois negros açoitando-a, que por milagre de Deus não morreu afogada ou arrenegada, com tão desastrado e horrendo castigo.
Item 7. Que um menino de seis ou oito anos, chamado Manoel, filho de uma escrava chamada Rosaura, o mandou virar várias vezes, com o devido respeito, com a via de baixo para cima mandando o arreganhasse bem com as duas mãos nas nádegas, estando com a cabeça no chão e a bunda para o ar, estando neste mesmo tempo o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com uma vela acesa nas mãos, e quando ajuntava bem cera derretida, a deitava e pingava dentro da via (ânus) do dito menino que com a dor do fogo, dava aquele pulo para o ar, acompanhado com um grito pela dor que padecia dos ditos pingos de cera quente derretida na via, sendo esta bastante. E disto rindo-se o dito Mestre de Campo, ao mesmo tempo com aquele regalo e alegria de queimar aquele cristão, o mandava que se fosse embora, dizendo: Ides para dentro de casa.
Item 8. Que uma menina de três ou quatro anos, pouco mais ou menos, chamada Leandra, filha de uma sua escrava chamada Maria Pai, a chamou e mandou se abaixasse e pondo a carinha da pobre menina declinada sobre um fogareiro de brasas acesas, e ele o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão pondo-lhe uma mão na cabeça, para que a menina com o calor não retirasse o rosto do fogo, em cujo tempo começou a abanar o fogareiro e a outra mão ocupada na cabeça da menina, sem ela a poder levantar, estando já a dita menina com o rosto defronte das brasas tão vermelhas e sapecado com as mesmas brasas, ao tempo que veio passando uma sua mulata, ama de sua casa, chamada Custódia, que vendo aquela heresia, lhe disse, gritando: Que é isso meu senhor, quer queimar a menina, não faça isso meu senhor! Então a largou, rindo-se como cousa que não fazia nada.
Item 9. Que a mesma menina Leandra, em outra ocasião, tirando-se um tacho de doce do fogo, estando o dito Mestre de Campo seu senhor assistindo a feitura do dito doce, chegando naquela ocasião a dita menina lhe perguntou o Mestre de Campo se queria doce, que dizendo a menina que sim, encheu uma colher de prata do doce, tirando-o do tacho, e estando ainda quase fervendo, derramou a colher do doce de repente na palma da mão da dita menina, e virando-se ela a mão no mesmo tempo para derramar o doce da mão por não poder aguardar pela estar queimando, logo investiu o dito Mestre de Campo, atracando-Ihe no pulsinho do braço, tendo a mão (de modo) que ela não o derramasse fora, ameaçando-a com gritos que o comesse e o lambesse e senão, que a mandava açoitar, e a miserável menina assim o fez, estando com a mão preza pelo pulso do bracinho, e saiu desta heresia com a mão e língua queimadas.
Item 10. Que manda as suas escravas deitarem-se com saias levantadas, e ao mesmo tempo, lhes vai botando ventosas com algodão e fogo nas suas partes pudendas, com a sua própria mão, dizendo: para chuparem as umidades - heresia tão ignorada entre a cristandade.
Item 11. Que a uma crioula chamada Teresa, sua escrava, casada, quan-do a apanhava dormindo, inda com a saia, antes de ser horas de dormir, ou de se deitar, levantando-lhe a saia, lhe metia uma luz acesa pelas suas partes venéreas, e toda a queimava, fazendo-lhe isto várias vezes, em ausência de seu marido, e quando todos os meninos e grandes se deitam neste caso, é à primeira e segunda cantada do galo e assim que o dia vai rompendo, que o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão se põe de pé, assim já hão de estar todos desta casa, grandes e pequenos, e o que não se levantou, logo vai à cama onde ele ou ela dorme, e com um chicote de açoitar cavalos, que já leva na mão, o põe miserável, e assim andam todos tresnoitados.
Item 12. Que apanhando o dito Mestre de Campo umas suas escravas dançando, depois de as mandar açoitar rigorosissimamente, Ihes mandou bo-tar uns papagaios de algodão com azeite nas partes venéreas, largando-lhe fogo, dizendo que era para lhes tirar o mesmo fogo, que todas as queimou.
Item13. Que uma sua escrava mestiça, chamada Rosaura, e duas mu-latas mais, Francisca e Maximiana, as mandou despir nuas, em uma sala, e ajuntando na mão dois rabos de um peixe chamado arraia, com eles as açoitou rigorosissimamente por todo o corpo, sem reservação de lugar al-gum, ficando estes corpos alanhados (golpeados) e cutilados, já sem pele, mandando depois arrancar os cabelos do pente (púbis) umas às outras, es-tando ele o dito Mestre de Campo no mesmo tempo com a sua própria mão barreando os ditos púbis com cinza quente para se arrancarem melhor, e quanto mais gritavam as pobres das dores que padeciam, mais com força mandava que arrancassem, lavrando ao mesmo tempo os malditos rabos de arraia. E depois de bem barbeadas nesta forma, mandou a cada uma se lhe desse vinte dúzias de açoites, e depois destas surras dadas, as mandou meter em correntes, e no dia seguinte mandou continuar com a mesma oficina dos açoites, e ficaram as miseráveis tão escandalizadas (maltratadas) do dito púbis e partes venéreas, que lhes inchou e pelaram da cinza, ficando o de-pois tudo em feridas e carnes vivas.
Item 14. No dia seguinte, sexta-feira da Paixão, mandou açoitar a dita Rosaura acima, e seu filho chamado Manuel, o qual já declarei no capítulo dos pingos de cera derretida, ambos rigorosamente; e a dita Rosaura, depois de açoitada, lhe mandou pôr uma grossa corrente no pescoço e uns grilhões nos pés, e depois disto feito, mandou chamar a um Alexandre José, rabequista, e metendo-lhe uma rabeca na mão, mandou que tocasse, estando com muita alegria no dito tempo e dia.
Item 15. Que costuma açoitar seus escravos maiormente no dia de Sexta Feira da Paixão, estando toda a semana muitas vezes sem açoitar. E no dia de Sexta Feira, anda em casa como endemoniado, ora dizendo pela casa passeando entre as suas escravas: A quem açoitarei eu hoje? ora dizendo: Ando com vontade de ver sangue de gente açoitado. E assim andam todos de casa assustados, vendo que é padecente. E naquela lida em que anda das nove horas por diante, manda pegar naquela ou naquele que lhe parece, e os manda açoitar por dois escravos, tudo a um tempo, até cansarem. E cansa-dos estes, manda continuar par outros dois, ora postos em escadas cruci-ficados, ora em camas de vento no ar, ora como lhe parece, sempre com martírios e heresias, deixando no chão poças de sangue, regalando-se de ver os cachorros comerem e beberem o sangue destas miseráveis criaturas.
Item 16. No mesmo dia anda em casa com um pauzinho na mão do ta-manho de um palmo, pouco mais ou menos, com uma ponta, chega-se a qualquer escrava, põem-se em pé junto dela, e começa a meter-lhe o pau-zinho pelo corpo, com quem quer furar: aqui mete, ali mete, e há de estar aquela escrava quieta suportando aquela tirania, ainda que lhe doa, e se ela buliu, como coisa que teve cócegas, ou recuou para trás, (diz): Pega! vai açoitar! e lá vai aquela pobre mártir. Muitas vezes busca para mandar açoi-tar no dia da Paixão.
Item 17. Que em outro ano, na Semana Santa, na Quarta feira de Tre-vas, açoitou e palmateou dois negros rigorosissimamente, Ambrósio e Narciso, e na Quinta Feira de Endoenças, tornou com a mesma diligência dos açoites de manhã aos mesmos. E de noite mandou açoitar a uma mulata, Francisca do Carmo, rigorosissimamente. E na Sexta Feira da Paixão, fez os mesmos castigos a outros escravos, como eles e elas assim o poderão confessar, e à forma como os castigou, e todos os anos na Semana Santa faz estes cas-tigos: para ele é o melhor prato, sem ficar Semana Santa alguma, há muitos anos, que não castigue naqueles dias, mormente na Sexta Feira da Paixão, com tanta alegria e vontade, que parece uma onça morta à fome em riba de uma carniça. E já se chegou a ele uma moça forra chamada Leandra de Freitas, achando-se nessa casa e suplício neste dia, pedindo ao dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão pelo amor de Deus não açoitasse naquele dia da Paixão do Senhor, respondeu o dito Mestre de Campo: Eu hoje, neste dia é que açoito! mandando continuar com os açoites mais rigorosamente.

Item 18. Que açoitando no mesmo dia o dito Mestre de Campo, em outro ano, a dois mulatos, Geraldo e Maximiana, rigorosamente, que disse a Ma-nuel Francisco dos Santos, seu foreiro e compadre se tinha regalado em tal dia de ver cachorros comer e beber sangue de gente açoitada, e foi certo que corria sangue dos dois cristão pela terra, que ensopava a mesma terra, pare-cendo um pote de água que se tinha derramado como assim dirão os mesmos escravos.
.Item 19. Que haverá cinco anos, que prendeu, depois de bem açoitadas, uma mulata escrava chamada Francisca do Carmo, e outra, chamada Ro-saura, cada uma com sua corrente, com a coleira pelo pescoço, e a outra ponta pregada no sobrado, onde estiveram presas nesta forma, sem dali se moverem de dia, nem de noite, para parte alguma, e haverá um ano, que as despregou do sobrado onde estavam presas, porém andando soltas ser-vindo a casa com as mesmas correntes no pescoço pela coleira com mais comprimento, enrolada pela cintura, e só se tiram estas correntes do pes-coço e cintura destas miseráveis no dia que se vão confessar pela desobriga da quaresma de ano em ano, porém vindo da confissão, logo para já lhe tornam a pôr as correntes na mesma forma dita acima, e há cinco para seis anos que andam estas pobres cativas com estas jibóias atracadas em si pela cintura e pescoço, sem delas poderem ter alívio algum, e já andam com o pescoço cheio de calos, feridos das coleiras, que continuamente trazem em si, assim dormindo, comendo, e assim doentes em uma cama, e assim toda a vida sem refrigério algum. Nascido este martírio, sem outra razão, ou fun-damento algum, senão pelas querer sujeitar com ele a ofensa de Deus, e quando não querem, indo da mesma sorte, lavra a novena de bacalhau, a novena de palmatoadas, com três dúzias de manhã, e três dúzias à tarde, e no outro dia, o mesmo, e assim vai continuando este castigo ou novena não ficando de fora os anjinhos, até elas se sujeitarem com ele a ofensa de Deus, contra a sua vontade. E esta devoção do Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão é qual nas suas escravas da porta a dentro e ainda porta a fora, com as mesmas suas afilhadas de batismo, como sucede e suce-deu com Ana, sua afilhada, filha de Martina já defunta, que quando ela não quer, a sujeita com vários açoites, anjinhos e martírios.
Item 20. Que esta Francisca do Carmo dita acima, atracada com a dita corrente, mandou ele, o dito Mestre de Campo que fosse ela dar de comer todos os dias a uma onça que tinha presa em uma corrente em um cepo, numa casinha evitando que os mulatos machos não dessem mais de comer à dita onça, só sim a dita mulata, por ser a raiva que dela teve, por evitar com ele dar ofensa a Deus: e isto o fazia com tamanho ânimo, oferecendo-se a Deus, gritando à onça que nunca a ofendeu. Porém, como Deus Nosso Se-nhor é pai de Misericórdia e Piedade, sabia o sentido com que o dito Mestre de Campo mandava aquela miserável botar de comer à onça, para ela a comer. Foi servido amanhecer um dia a dita onça morta, para alívio do susto com que aquela miserável escrava vivia, pois estava vendo o dia que a onça faria dela carniça ou prato.
Item 21. Que estando lendo livros de noite, deitado em uma rede, manda as suas escravas ou meninos pegar em uma luz, e ali está a pobre mulher ou o pobre menino em pé com a candeia na mão, desde as sete ou oito horas da noite, até meia noite, pouco mais ou menos, sem dali se mover, sempre com o cuidado de atiçar a candeia, e se daquele excesso de estar em pé até aquelas horas lhe sobrevem alguma coisa na cabeça, talvez de fracos, por não terem comido naquele dia, por andarem sempre mortos a fome ou outra qualquer moléstia ou dor, logo manda no mesmo instante açoitá-lo rigoro-sissimamente, ainda que seja meia noite, amotinando e assustando a casa, dizendo ele nela ou nele menino velhacaria, sendo estes candeeiros, veladores e castiçais, mas tudo é estar esperando ou buscando ocasiões de abusar aqueles pobres cristãos.
Item 22. Que a um menino de quatro anos, chamado Arquileu, filho de uma sua escrava, chamada Prudência, vigiando uma figueira os passarinhos não comessem os figos dela, e por achar um figo picado dos ditos passari-nhos, o açoitou com um chicote de açoitar cavalos, pondo-o nu, rigorosis-simamente pelas costas, pernas e todo o corpo, e principalmente pela bar-riga já com feridas tão idôneas (hediondas?) e feias, que senão fora uma sua mulata chamada Custódia, ama de sua casa, que desesperadamente veio de dentro, pegando no menino e o meteu entre as pernas, cobrindo-o com a saia, dizendo: também quero morrer mate-me a mim também, que depois de morta escusarei de ver tantas heresias que se fazem nesta casa sem temor de Deus e de sua Mãe Santíssima. Então sossegou o Mestre de Campo da-quela maldita fúria e barbaridade com que estava martirizando aquele po-bre cristão Anjinho, e senão, matava-o debaixo daquele chicote, porque já lhe tinha comido toda a pele do corpo, principalmente da barriga, que es-tava já tudo em carne viva. E ela olhando e vendo em seu filho aquela heresia e barbaridade, como estaria aquele coração atormentado e ago-niada! E assim se observa o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com todos os meninos de sua casa, que vê-los das náde-gas metem compaixão. E se a mãe do filho que apanha mostra tristeza e sentimento, também vai ao suplício. E se o filho mostra tristeza e senti-mento da mãe que apanha, também vai ao suplício. E se o parente, que apanha, mostra tristeza, também apanha: hão de ver e presenciar, e andar alegres. Enfim, não digo nada ao muito que tinha que dizer.
Item 23. Que a um menino de oito ou nove anos, chamado Jerônimo, depois de o esbordoar com uma tábua, deixando-o quase morto, por não reservar lugar por onde lhe dava, o mandou açoitar rigorosamente que me-tia compaixão, mandando depois por-lhe uns grilhões nos pés e uma argola de ferro no pescoço, com hastes levantadas para Ihe por campainhas, e mandando furar-lhe os rejeitos dos pés e pelos buracos enfiar uma corda e pendurá-lo ficando com os pés para cima e a cabeça para baixo. E depois disto, o açoitou novamente rigorosissimamente que o deixou quase morto.
Item 24. Que a uma mulata chamada Maria do Rosário estando açoi-tando-a encima de um banco, supõe-se três ou quatro horas em açoites, que já não havia santo nem santa nem Paixão de Jesus Cristo, nem a Virgem Nossa Senhora, por quem ela chamava que a valesse, e por este respeito, mais acendidamente mandava que puxassem pelos açoites, gastando todo o tempo acima declarado que quase esteve a dita mulata blasfemando, pe-dindo ao diabo que a acudisse e a valesse, que era tanto o sangue que corria em regatos. E depois disto, a mandou logo no outro dia seguinte para uma sua malhada do tamanho quase do terreiro desta cidade, ou metade dele, mandando capinasse a dita mulata com as mãos, onde esteve todo dia ao sol sem comer no dito serviço, ficando por todos os dias arrancando vassou-rinhas e ervinhas e outras imundícies mais de ervas que se criam entre o capim, e sem comer, à chuva e ao sol, sem dali se arredar, comendo somente o que de salto apanhava das mãos das outras parceiras e parentes que por caridade lhe davam.
Item 25. Que a um escravo chamado Antônio Magro, contratando o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com ele dar-lhe o seu valor, passar-Ihe carta de alforria, e depois que Ihe comeu a esta conta umas vacas e uns capados, galinhas e leitões, à conta do dito valor, a conta que lhe passou foi uma noite à senzala do dito negro, acompanhado com seis escravos, e mandando-o pegar uns pelas mãos, outros pelos pés, e ali o amarraram, tapando-lhe os olhos e a boca, derrubando-o no chão, lhe mandou botar à força uma ajuda (clister) de pimentas malaguetas com pito de preto e metendo ele o canudo a força, que tudo já levava pronto para o dito bene-fício ou carta de alforria, mandando o largassem depois disto. Que esteve à morte, sendo de idade de setenta para oitenta anos.
Item 26. Que a uma novilha prenhe de uma pobre parda, chamada Ana Maria, dizem ser irmã bastarda do dito Mestre de Campo, por vir ao seu curral junto com outro gado seu, por assim virem do pasto incorporados, a mandou pegar e amarrar, ficando-lhe as armas bem encostadas e arro-chadas em um mourão, e com fachos de fogo que mandou fazer, e mandou queimar toda pela barriga, peitos e partes venéreas, olhos e principalmente todo empenho da parte de baixo, que era de uma dor de coração, ver as heresias que mandou fazer àquele pobre animal, estando preso sem dali se poder escapulir, que ainda os Turcos não fariam semelhante barbaridade, só sim os Judeus. E não durou esta pobre novilha quinze dias, perdendo-a sua dona, que é o que ele queria.

Escravos da casa, que todos sabem:
José Pereira - Francisco Gago - Amaro - Geraldo - José - outro José - Bastião, sua mulher Teresa - Maria do Rosário - Páscoa - Maria crioula - Maria Pais - Custódia - Ana - outra Ana Marinha, sua afi-lhada - Rosaura - Francisca do Carmo - Manoel mulato - outro Ma-noel, dos pingos de cera derretida quente - José Mais - e outros mais escravos que todos sabem destas heresias.

Heresias ditas e feitas contra Deus Nosso Senhor e os Santos

Item 27. Que dizendo ao José Ferreira Vivas ao Mestre de Campo que Cristo Nosso Senhor havia padecido gravíssimos tormentos desde a hora de sua prisão até no final da hora de sua morte, crucificado em sua carne e que só um poder divino feito homem podia tolerar tão graves tormentos por nosso amor, para nos resgatar do cativeiro do Demônio, respondeu o dito Mestre de Campo, por sua própria boca estas formais palavras: "Que diz, homem? É verdade que morreu um Apóstolo, porém não se sabe quem era". Mostrando neste dito, pronunciado por sua própria boca, ser suspeito na fé, em não crer que Deus Nosso Senhor se fizera homem, para satisfazer por nossos pecados, sofrendo a pena de morte em seu corpo santificado, o que não pu-dera fazer se não se fizera homem.

Item 28. Que disse o dito Mestre de Campo ao Capitão Antônio Pamplona Vasconcelos: que se fora senhor de vinte Igrejas, fizera nessas vinte estrebarias de cava-los.
Item 29. Que tem o dito Mestre de Campo várias imagens de Santos e santas na sua casa, todos estercados de pombos, morcegos e outras imundícies mais, com pouco asseio e reverencia.
Item 30. Que queria o dito Mestre de Campo queimar um caixão com os ornamentos da Santíssima Madre de Deus, e por assim lho impedir um irmão, ou Manuel Baptista ou Florêncio Vieira, mandou botar o caixão da parte de fora da sua capela, para tudo o tempo consumir.
Item 31. Que disse o dito Mestre de Campo, que tomara já que o diabo lhe derrubasse a sua capela ou uma tempestade a botasse no chão e que quebrasse todos os santos e santas que nela estão.
Item 32. Que diz o dito Mestre de Campo que há de tomar todos os santos e san-tas da dita sua capela, e os há de meter dentro de um caixão e depois lhes há de mandar largar fogo, para os queimar a todos, e que a Capela há de fazer dela, (com o devido respeito), um chiqueiro de porcos, achando melhor patrimônio para a sua alma fazer da Igreja sagrada casa de cevados, do que dá-la ao Reverendo Vi-gário para fazer nela suas funções paroquiais e obséquio dos Santos.
Item 33. Que me disse o dito Mestre de Campo que se morrer nos caminhos do Sertão, que o enterrassem no mesmo lugar, sem cruz alguma, e que de nenhum modo o levassem a alguma igreja, nem mesmo a lugar sagrado, e que antes queria ser sambenitado por judeu, do que ser Mestre de Campo.
Item 34. Que disse o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão ao Capitão Luís de Varjão Brandão, que quando escrevia algumas cartas aos homens por sua própria letra, que cuidava muito nelas em judiar dos homens.
Item 35. Que disse o dito Mestre de Campo a José Francisco Vivas, que ele era judeu, e que quando conversava com os homens, cuidava muito na sua conversa em judiar deles.
Item 36. Que dando uma moça forra, chamada Benedita, da mesma casa, a um mulato, escravo de José Pires de Carvalho, uma Bula para nela lhe por o seu nome e pondo o dito mulato a bula aberta por cima de uma mesa, indo primeiro a certo serviço em casa, em cujo tempo passando acaso por ali o dito Mestre de Campo, e vendo a Bula em riba da mesa e o tinteiro junto, pegou na pena tirando tinta, pôs ou escreveu no lugar onde se põem os nomes (com o devido respeito) estas palavras MERDA - CAGALHÃO. E vindo depois o dito mulato, que pe-gando na Bula para lhe por o nome, e vendo aquela heresia, a mostrou a seu Senhor José Pires de Carvalho, que pedindo este uma tesoura, dizendo: Jesus, Jesus e cortou as ditas palavras. Testemunhas que assim sucedeu: o padre Brás Pereira Soares, a mesma Benedita dona da Bula, sua mãe Luzia Mendes, sua irmã Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, o mesmo José Pires seu cunhado, e outras muitas pessoas.
Item 37. Que tomou o dito Mestre de Campo uma imagem de um santo ou santa bento, que estava na sacristia da sua capela, e o meteu dentro de um cesto ve-lho, sem mais toalha por baixo, nem pano algum, mais que pondo a imagem dentro do cesto e cobrindo-a com uma folha de bananeira, assim a mandou levar à sua avó, Dona Ignácia de Araújo Pereira, em Jacuípe, três léguas distante de sua casa, que quando viram o cesto, entenderam seriam bananas, que posto o cesto no chão e vendo que era a imagem coberta por desprezo com folha de banana, logo Padre Brás Pereira Soares, Vedor e Procurador da dita Dona Ignácia, mandou com muita pressa retirar o cesto para dentro da casa, dizendo fôra bom não es-tar ali naquela ocasião pessoa de fora, por não presenciar aquela heresia.
Item 38. Que duas imagens que lhe ficaram, mandou ao sacristão Florêncio Vieira, na mesma ocasião, fizesse um buraco no chão na mesma sacristia, e os enterrasse, dizendo o dito sacristão que não fazia tal, ainda que o matasse; sempre mandou o dito Mestre de Campo que fizesse o buraco, que ele os enterraria, e fazendo o sacristão o buraco, ele os metera dentro, pegando um pelas pernas, outro pela cabecinha, e os lançava dentro, botando-lhe terra, (suponho) com os pés, ou se mandou botar, e socar. E se isto é assim ainda hão de estar enterrados, se a terra os não desfez na mesma sacristia, haverá nove ou dez anos, e quem pode depor esta mesma verdade, é a mesmo sacristão Florêncio Vieira, com que se passou esta heresia, o qual se acha morando com Dona Ignácia de Araújo Pereira, avó do dito Mestre de Campo.
Item 39. Que este caso, dizem, que o contou uma parda chamada Antônia Barbo-sa, casada com um Amaro dos Banhos, mora hoje esta em companhia de um Manoel Francisco dos Santos, morador no sítio dos Campos, na mesma Torre. E diz ela contando esta história a uma crioula chamada Clemência, forra, casada com João da Casta, preto forro, (pessoa de crédito, ainda que preto), por se mandar inquirir segunda vez da dita Antônia Barbosa, e disse ela por sua própria boca que morando em Monte Gordo, Freguesia de Santo Amaro do Ipitanga, passara da Torre este dito Sacristão Florêncio Vieira, por sua casa ao meio dia, onde entrou para descansar o sol, e que estando ele sentado lhe perguntara a dita Antônia Barbosa se ele já havia feito a sua capelinha, e que ele respondera que não queria fazer mais a capelinha, por vir fugindo daquele Judeu, que era o Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão , por ter enterrado dois santos na sacristia, contando a história que ele mandara o cesto coberto com as folhas de bananas e que os dois que haviam ficado lhe mandara fizesse um buraco e os enterrara, e pondo ele dúvida em tal fazer dizendo antes queria mor-rer, sempre o dito Mestre de Campo lhe mandou ou obrigou fizesse o buraco, que os enterraria e assim o fez, pegando um pelas perninhas, outro pela cabecinha, e os lançara dentro do buraco, lançando-lhe terra com os pés e este dito sacristão o poderá depor melhor, e com mais circunstâncias e a dita Antônia Barbosa é digna de se lhe dar crédito e não tinha fundamento para levantar semelhante balela, e falou nesta estória conversando com esta Clemência em tem-po de trovões, dizendo que tinha medo nesse tempo quando fazia trovões, não caísse aquela casa por ter feito o dono dela aquela heresia, e por aqui foi que se des-cobriu a que estava encoberto tantos anos.

Item 40. Que o dito Mestre de Campo, andando uns devotos correndo a Santa Via Sacra em uma Sexta Feira da Paixão, começou de sua casa, em lugar reservado, a apedrejar com pedras os ditos devotos, andando estes neste santo exercício.

Item 41. Que em outra ocasião, vindo o dito Mestre de Campo de cavalo encontrando com outros devotos, correndo a Via Sacra, meteu o cavalo entre eles, es-palhando uns aqui, outros por ali, que tudo espalhou e perturbou, a ali com medo dele se acabou o dito exercício.
Item 42. Que uma véspera de São João, ajudou uma Missa que dizia o Reverendo Padre Silvestre Carneiro de Sá, seu Capelão, em uma capela, e no deitar do vinho no último cibório, deixou o dito padre na galheta quanto lhe bastasse para cele-bração do Santo Sacrifício da Missa no dia seguinte de S. João para os seus apli-cados a ouvirem com sermão que naquele dia pretendia fazer. Que o dito Mestre de
Campo alcançando isto, foi maliciosamente à galheta e bebeu o vinho que nela ha-via, para o dia seguinte. E dando disto fé o sacristão Florêncio Vieira, lhe disse: Mas se meu Senhor bebe o vinho, amanhã o Padre não diz missa. Respondeu o dito Mestre de Campo: Amanhã a despenseira que dê vinho para a Missa, e de madru-gada partiu para o Monte Gordo, distância de três léguas, passando ordem à despenseira não desse vinho quando lho pedissem para a Missa, e se ela o desse, e se dissesse Missa com o seu vinho, que ela lho pagaria, e como ele não estava em casa, não se lhe pediu nem se disse a Missa, que é o que queria, pois com a mesma malícia bebeu o vinho da galheta. E chegando o Padre no dia seguinte de São João com todo o povo daquele lugar para ouvirem a Missa e sermão, e querendo o Padre vestir-se a horas para a dita celebração, foi o sacristão pedir o vinho à despenseira, a qual respondeu não havia vinho, confessando a ordem que Ihe deu seu Senhor, de que fez presente ao Padre. Isto foi sabido já perto das onze horas, ficando o povo amotinado contra o Padre, que se não tinha vinho lhes podia fazer saber cedo, para cada qual buscar Missa a tempo e horas, para não ficarem sem Missa no dito dia, que não houve desculpa do miserável Padre para ter admitida a sua verdade e tragédia do dito Mestre de Campo, com o dito povo e seus aplicados, e daqui procedeu correr o dito Mestre de Campo com o pobre Padre da dita sua capela e terra, por este ter com ele uma satisfação, pelo respeito do dito acima.
Item 43. Que tem o dito Mestre de Campo uma cabocla feita de barro, do ta-manho de dois ou três palmos, feita do tempo antigo dos seus antepassados, com a boca aberta e feia, com a língua de fora, e a pôs em uma cova que tem em uma parede como oratório, com uma vela acesa em um castiçal nos pés da dita figura, como se estivesse aos pés de algum santo, e ali a esteve adorando como se fosse alguma imagem de algum santo, o tempo que lhe pareceu, até tirar o castiçal com a vela, o que presenciou o Capitão do Mato Alexandre José.
Item 44. Que passando por varias moradores no mesmo lugar da Torre, de cavalo, com uma sua mulata nas ancas do cavalo, chamada Custodia, perguntou a um de seus moradores: Como se chamava uma coisa que tem dentro as partículas ou o Sacramen-to? Responderam que chamava-se Custódia. Disse então o Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão : Pois eu aqui levo a Custódia no cu do meu cavalo. Deste fato, poder-se-á lembrar Luzia Mendes ou sua filha, Dona Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, que eram todas moradores nesse mesmo lugar, e outras pessoas mais.

Item 45. Que indo certos mascates à presença do dito Mestre de Campo com várias imagens pequenas de verônicas, cruzes, crucifixos, e outras mais, pegou o dito Mestre de Campo em um feitio de um Menino Jesus e tendo-o nas mãos, o deixou cair no chão que o mesmo mascate o levantou, e havendo quem lhe perguntasse depois por que deixou cair das mãos o Menino Jesus, respondeu o dito Mestre de Campo: Ele não era Menino Jesus porque se deixou cair e não se deteve no ar. Esta tam-bém a presenciou o mesmo Capitão Alexandre José.
Item 46. Que tomou a Cabocla de barro acima dita, e a meteu em uma cama de colchão entre dois lençóis mui bem lavados, e mandou chamar o Padre Antônio Félix para vir a uma confissão, que chegando o dito Padre, mandou confessasse aquela enferma, e foi descobrindo o lençol, amostrando a dita Caboclinha, dizen-do: Aqui está a enferma confessa. E vendo o dito Padre aquela heresia, foi viran-do para trás, dizendo: Boas asneiras são estas, que com riso disfarçou o dito Mestre de Campo esta tratada como cousa que não tinha feito nada. Esta também a presenciou o Capitão Alexandre José.
Item 47. Passando em sua casa o dito Mestre de Campo, por uma casinha ou camarinha de cima, e tendo uma imagem no chão (suponho) de Senhora Santana, naquele passar pela imagem pela pressa com que ia, pegou o timão na santa em alguma coisa que ficasse pegado, virou com uma fúria e raiva para trás, e deu tal coice na santa, que atirou com ela deitada no chão, e assim a deixou, seguindo para diante ao intento com que ia, sem fazer mais caso de a levantar e a reve-renciar.

TESTEMUNHAS REFERIDAS:
Luiz Mendes - Cosma Pereira de Carvalho - Maria do Nascimento e seu marido João Baptista - Ana sua filha - Agostinha Dias - Rosa Maria de Jesus - Filha de Luzia Mendes - Benedita Vieira, sua irmã - Clemêncio mestiço - Teresa Mestiça e sua irmã - Mariana Vieira - Sua filha Ana Maria - Ana Maria passageira da passagem da Pojuca - Antônio Ta-vares, sua mulher Marceliana - José Fogaça - Florência sua mulher -Margarida, irmã da dita Florência - Teresa de tal, mãe de Manuel, pai de Rosa Maria de Jesus - Mulher do filho de Luiz Alvares - Felipa Pereira -Manuel Alexandre seu neto - Margarida Ferreira - Maria da Cruz -Joana de tal, no sítio da Pinguela - Maria Aranha, sua filha - Leandra de Freitas - Isabel de tal, sua mãe Leonor, moradores na Praia da Torre - -Francisco Tavares - Luís da Costa, sua mulher Felícia de tal - o Padre Brás Pereira Soares.

Este fez: JOSÉ FERREIRA VIVAS"
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo n° 16.687)

A fim de auxiliar na reconstituição do interior, dos espaços, objetos, móveis, pessoas, eventos, redes de relação e do quotidiano da famigerada Casa da Torre da Bahia, enumero e esclareço algumas informações etnográficas referidas neste documento que permitem-nos visualizar parte do "recheio" desta propriedade e aspectos cruciais da vida privada de seus proprietários, escravos e agregados nos meados do Século XVIII:

I. Espaços da propriedade rural
· capela
· curral
· "malhada do tamanho quase do terreiro desta cidade ou metade dele". Malhada: "lugar de uma plantação de capim de corte"
· pasto
· sacristia
· senzala

II. Cômodos e detalhes arquitetônicos
· casinha ou camarinha de cima
· "cova em uma parede como oratório": nicho
· prisão

III. Móveis
· banco,
· banquinho
· "cama de colchão entre dois lençóis mui bem lavados"
· cama de vento

IV. Objetos do lar e utensílios
· caixão
· cesto
· cocos de água: "vasilha feita do endocarpo do coco-da-baía ou folha-de-flandres, no qual se embebe, perto da boca, um cabo torneado e serve para tirar a água dos potes"
· colher de prata
· livros
· mesa
· pena de escrever
· rede
· tacho de doce
· tesoura
· tinteiro

V. Iluminação e combustão:
· candeeiros
· candeia
· castiçais
· fogareiro de brasas
· vela
· veladores: "suporte vertical de madeira, que assenta em uma base ou pé e termina, no alto, por um disco onde se põe um candeeiro ou uma vela"

VI. Imagens
· "Caboclinha: uma cabocla feita de barro, do ta-manho de dois ou três palmos, feita do tempo antigo dos seus antepassados, com a boca aberta e feia, com a língua de fora"
· Várias imagens de santos e santas

VII. Ferramentas e instrumentos
· corrente de guindar pedras ou caixas de açúcar
· escada de madeira
· turquesa grande de sapateiro
· uma arroba de bronze

VIII. Alimentos e plantas
· figos
· pimentas malaguetas
· pito de preto
· doce
· vinho

IX. Instrumentos de tortura
· Anjinhos: "anéis ferro com que se prendiam e apertavam os dedos de escravos e criminosos"
· argolas de ferro: para prender a cabeça ou membros dos escravos, com suas cordas
· cavalo de pau: espécie de cavalete onde se descansavam as selas e arreios das cavalgaduras, utilizado como uma espécie de "pau de arara" para chicotear escravos
· chicote de açoitar cavalos: usado para flagelar escravos
· "ferro de pescoço, com duas vergas levantadas, em alto, que teriam mais de palmo e meio, e em cada uma delas uma campainha e uma corrente muito grossa no pé, passando duas voltas pela cintura do escravo, indo a ponta dela atar às campainhas"
· grilhões: para prender os pés
· jibóias: corrente que se atracava na cintura e pescoço do escravo
· palmatória de pau
· "pauzinho do ta-manho de um palmo, pouco mais ou menos, com uma ponta"" usado para pinicar as escravas
· rabo do peixe arraia: usado como chicote para açoitar escravos
· turquesa grande de sapateiro: usada como objeto de tortura para arrancar mechas de cabelo dos escravos
· papagaio: "pequena pasta de algodão que se coloca ao pé Oou em outra parte do corpo) de quem dorme e à qual, por brincadeira, [ou como tortura] se ateia fogo"

X. Medicina
· "ajuda": clister para lavagem intestinal
· ventosas com algodão para tirar umidade

XI. Celebrações
· dança de escravas
· desobriga da quaresma
· missa de São João na capela da casa da torre
· procissão da Via Sacra na sexta feira da paixão

XII. Personagens e tipos sociais
· ama de casa
· afilhadas de batismo
· rabequista
· capitão do mato
· despenseira
· irmã bastarda
· foreiro
· compadre
· mascates que vendem imagens, verônicas, cruzes, crucifixos
· padre
· capelão
· sacristão

XIII. Animais
· cachorros
· capados
· cavalo
· galinhas
· leitões
· novilha
· "onça presa em uma corrente em um cepo, numa casinha"
· vacas

NOTAS
1.Parte desse texto encontra-se publicado in Mott, Luiz: "Terror na Casa da Torre: Tortura de escravos na Bahia Colonial", in J.J.Reis (org.), Escravidão e Invenção d Liberdade. S.Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.18-32


Bibliografia:
Calmon, Pedro: História da Casa da Torre. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1984 (1a Edição, 1940)
Mott, Luiz: "Terror na Casa da Torre: Tortura de escravos na Bahia Colonial", in J.J.Reis (org.), Escravidão e Invenção d Liberdade. S.Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.18-32